Nossa intenção é revelar a verdade. Mas não a verdade abstrata, retórica. E sim a que pode ser útil, até decisiva, para o destino de todo aquele que a conhece. A verdade que tem o poder de transformar quem a descobre.
Mas, por razões que já a seguir se tornarão autoevidentes, é preciso começar do princípio, é preciso apresentar algumas verdades sobre essa verdade.
A primeira é que a verdade é simples, e pode ser quase toda resumida em poucas palavras. A segunda é que a verdade, apesar de simples, é profundamente contraintuitiva. Por isso, o acesso à verdade depende de não só de vencermos uma barreira intelectual, maior ou menor a depender do indivíduo. Depende, principalmente, de superarmos uma muralha emocional, arraigada em nossos instintos primitivos.
A Circumambulation
É que o ser humano foi programado pela evolução com um forte apego a determinada percepção de sua identidade que, embora útil quando seus antepassados sobreviviam nas savanas africanas, de modo algum corresponde à realidade dos fatos.
Portanto, devemos nos aproximar da verdade dando voltas ao seu redor. É como se estivéssemos acompanhados de um animal, e ele precisasse ser amansado antes de o levarmos ao destino final, o conhecimento da verdade.
Esse movimento em torno da verdade está presente em vários mitos e rituais primitivos, e é conhecido como circumambulation. Sem o movimento circular que se aproxima lentamente da meta, o animal que nos acompanha empaca e pode até morder nossa mão se tentarmos movê-lo.
Esse animal tem um nome. Ele é chamado de ego.
O Ego
O ego apega-se a noções de identidade que são importantes para continuarmos vivos e operacionalizarmos nossa relação com este mundo. Portanto, ter um ego saudável é tão importante quanto ter um coração saudável. Quando se trata, contudo, de questões que desafiam a noção de identidade e realidade em que o ego está acostumado a operar, ele reage como um macaco furioso.
O processo de conhecimento,em resumo, não é apenas um processo de superação intelectual [1], mas de superação emocional. Isso ocorre com o amansamento do ego, para que, como guardião do portal da identidade, dê a certas verdades à consciência de modo que tais verdades ali chegando operem transformando e evoluindo o próprio ego.
Essa evolução decorre de duas causas estreitamente vinculadas. A primeira é que a assimilação de verdades contraintuitivas reformula a própria noção de identidade pessoal e de realidade imediata que são tão importantes para o funcionamento do ego. Ele passa a operar, de certa forma, com maior conhecimento do mundo ao seu redor, e assim dispõe de mais recursos e poder para cumprir suas funções. O ego começa a perceber com clareza cada vez maior a responsabilidade por trás de suas decisões, e assim se aprimora no manejo do destino humano.
A segunda razão dessa mudança é que o ego é evolutivamente vinculado a emoções que podem resistir de forma inarredável ao enfrentamento daquilo que é contraintuitivo sobre a verdade. Alguém observará isso não apenas em seu ego, mas também na reação do ego de outros ao seu redor, quando a verdade sobre a condição humana passar a ser revelada.
O aspecto emocional precisa, portanto, ser considerado. E como é fácil intuir, uma questão do aspecto emocional só pode ser resolvida com a linguagem da própria emoção. Por isso, na busca pelo conhecimento da verdade, a única forma de lidar com essas emoções poderosas e primitivas é recorrendo a uma emoção superior, sofisticada no entanto tão simples quanto a verdade: o amor. Por tal razão que dizemos, quase como lema, que a verdade precisa vir acompanhada do amor.
Esse processo pelo qual o ego, em um movimento de circumabulatio, transforma-se e evolui a medida em que entra em contato com a verdade, Carl Gustav Jung interpretou e descreveu minuciosamente, chamando-o de processo de individuação.
E Jung lembrou-nos que os alquimistas, ao tentar desvendar o segredo da matéria a fim de supostamente “transformar metal ordinário em ouro”, descobriram, para sua surpresa, que nesse processo em busca de conhecimento a própria natureza daquele que conhece.
Os arquétipos
Como a verdade é contraintuitiva e emocionalmente sensível, não é a linguagem discursiva o melhor instrumento para compreendê-la. Não há palavras para descrever diretamente certos aspectos importantes da verdade. Apenas analogias e alegorias conseguem tornar mais familiares à mente humana esses aspectos.
Por isso, o movimento de aproximação gradual e circular até a verdade é repleto de símbolos, personagens e histórias que tentam transmitir aspectos da verdade de uma maneira alegórica. Tais símbolos, personagens e histórias são chamados de Arquétipos e estão presentes em todas as culturas e tradições, presentes em mitos, fábulas e narrativas populares. São, em síntese, universais, como Mircea Eliade, Joseph Campbell e Carl Gustav Jung e outros sábios demonstraram à humanidade no século vinte.
Considere-se, por exemplo, o mito do Embusteiro ou Trickster. Esse personagem está presente em diversas mitologias, sempre na figura de uma divindade ao mesmo tempo benéfica e maléfica, de grande auxílio mas por vezes enganadora, que frequentemente ludibria os próprios deuses e traz conhecimento ao ser humano. Na Grécia Antiga, era o deus Hermes. Para a tradição africana, era a divindade Ekwensu, sobre o qual se diz que uma vez vestiu uma roupa branca de um lado e negra do outro, e passou no meio de um caminho entre dois vizinhos, de modo que ambos começaram a discutir sobre a cor da roupa do desconhecido.
Por esse motivo é que a figura popular do Harlequin, outro Trickster, possui uma roupa de losango coloridos. O Embusteiro recebe o ego em sua jornada para a evolução representando justo a transição entre o mundo familiar e a realidade profundamente contraintuitiva. Ambos os aspectos estão presentes na sua figura.
Por isso, é interessante que os antigos alquimistas tenham feito uma associação entre a Pedra Filosofal e o Mercúrio Filosofal. O Mercúrio é uma representação do deus Hermes, e muitos textos alquímicos descrevem-no como uma entidade que está e não está em determinado lugar, sempre sorrateira, sempre fugidia, mas que contém o segredo da matéria. Em nada diferente do comportamento absurdo, ilógico, das partículas subatômicas investigadas pelos cientistas no mundo atual.
Assim como o Embusteiro, muitos outros arquétipos conseguem amarrar, em um só sistema simbólico, vários aspectos universais da vida humana nesta realidade e inclusive padrões fundamentais dessa própria realidade. Quando a verdade principal for transmitida, perderemos um agradável tempo explorando tais alegorias.
A individuação
Dizer que o ego nos serve de escudeiro é de certa forma injusto, pois ele também é intérprete e construtor, como a seguir se verá. Porém, o mito do cavaleiro e seu escudeiro é útil para explicar a posição do ego na vida humana.
O ego possui uma função fundamental no território da consciência. Ele deve operacionalizar a relação do organismo com o mundo exterior no âmbito das decisões conscientes, usando sua de aprendizado para cumprir uma missão dada pela natureza: maximizar as chances de sobrevivência do organismo e assegurar a proliferação da vida.
Mas, então, qual é o centro da consciência? Quando falamos em centro, falamos da mente humana como se ela pudesse ser representada por um espaço. E justo por isso é que em muitas tradições surge o arquétipo do jardim ou espaço sagrado em cujo centro há uma fonte.
As múltiplas vidas de uma só pessoa em realidades alternativas, coordenadas por uma Mente Profunda, conforme descrita por alquimistas chineses (Ilustração do livro “O Segredo da Flor de Ouro”, prefaciado por Jung e traduzido por R. Wilhem).
Isso porque o centro da consciência não é um lugar, mas uma passagem. E uma passagem para algo vivo e transcendente. Portanto, poucos símbolos são tão adequados como o de uma fonte.
Mas a passagem para o que?
Podemos imaginar a mente humana, nesse estágio de nosso aprendizado, como uma forma de sistema operacional do cérebro humano: o software que comanda o hardware. Desse ponto de vista, o ego é um módulo do sistema destinado a fazer a interface com o mundo exterior e proteger a noção de identidade pessoal. Mas ele não é o centro desse software, pois no centro do software há uma passagem para um sistema operacional maior, mais abrangente, que Jung denominou de Inconsciente Coletivo.
O Inconsciente Coletivo
O que Jung chamou de Inconsciente Coletivo não tem nada de inconsciente e tampouco de coletivo, não ao menos no sentido usual de ambas as palavras. Trata-se de algo que só é inconsciente em relação ao ego humano e à consciência individual (pois isso, feito de forma descuidada, o deixaria desestruturado), e que é coletivo em um sentido muito peculiar.
O Inconsciente Coletivo, portanto, é o espaço de um sistema operacional superior (uma Mente Superior), que coordena o sistema operacional individual (cada mente individual) utilizando “linguagem de programação” composta de módulos relativamente autônomos (que possuem de certo modo, sua própria consciência incorpórea). Esses módulos são os arquétipos. Estão presentes principalmente nos sonhos que temos à noite, na forma muitas vezes de rostos familiares, pois esse é o momento em que temos um passageiro vislumbre de como funciona o sistema operacional superior.
Desse modo, os símbolos, narrativas e personagens das antigas fábulas e mitos de antigas tradições não são apenas formas de a mente humana familiariza-se com a verdade contraintuitiva. Também são módulos da “linguagem de programação” de um “sistema operacional” superior à essa mente individual.
No centro da consciência, portanto, há uma passagem que conduz a esse espaço, e que vincula a mente humana a uma consciência superior e mais abrangente. Tal consciência, junto com os arquétipos, operam no espaço que em textos anteriores denominamos de hipercontexto.
Por essa passagem há em constante fluxo de informações, utilizando a linguagem arquetípica para que o sistema operacional individual, a mente de um ser humano situada em sua realidade, comunique-se com o sistema operacional superior que opera no contexto de múltiplas realidades humanas. Durante o sonho, tal fluxo de informações torna-se mais explícito.
E no centro desse sistema operacional superior, há uma consciência que é inatingível pela consciência individual – ao menos diretamente. Jung chamou-o de Self.
O Self
Todos os mitos e culturas da humanidade possuem um sistema de arquétipos, e invariavelmente todos esses sistemas possuem um arquétipo principal ou central, que a um só tempo coordena e “é” o sistema em sua totalidade. Esse arquétipo, totalizante e central, concilia todos os aspectos aparentemente contraditórios do sistema, e não pode ser inteiramente assimilado por qualquer parte do sistema, embora esteja presente, conscientemente em todas.
Seja o topo de uma Montanha Sagrada, o centro de um Palácio Celestial, ou o eixo de uma enorme roda que abrange o mundo, esse lugar central sempre foi simbolizado e retratado por todas as culturas. O sistema de arquétipos, então, terminava por ser representado na forma de um mandala, no centro do qual está o símbolo da totalidade.
O Self de Jung, o arquétipo que se encontra situado no centro do sistema composto por arquétipos e consciências individuais de cada ser humano, em cada realidade particular, tem muitos nomes, a depender do mito ou da fábula. É a verdadeira Pedra Filosofal descrita pelos Alquimistas, é o Santo Graal das lendas aturianas, é a Flor de Lotus dos budistas, é o Monte Meru dos tibetanos. Mas talvez quem melhor tenha definido o Self tenham sido os upanixades, com o conceito de Atman.
A busca pela verdade, portanto, possui três aspectos. O primeiro aspecto é o entendimento intelectual, relacionado à compreensão das pistas que nos revelam a verdadeira identidade da realidade em que vivemos. A segunda parte é a assimilação emocional, relacionada com a aceitação de verdades contraintuitivas. A terceira parte é arquetípica, e opera no espaço de símbolos que apontam para algo que transcende a experiência comum do ser humano.
Essa busca é, como vimos, um caminho circular, desenvolvido em um espaço que pode ser comparado a um jardim ou labirinto. Nesse jardim, encontramos em cada canto um símbolo, uma narrativa folclórica ou uma imagem de alguma divindade primitiva, tudo servindo de alegoria para os vários aspectos da verdade a ser conhecida. No centro desse jardim, no fim do labirinto, há uma fonte.
Essa fonte, na verdade, é uma passagem. Essa passagem nos leva a um labirinto muito maior, que dá acesso a todos os labirintos individuais. E, no centro desse labirinto maior, está sentado alguém. Esse alguém está constantemente consciente de todas as vivências individuais que cada versão de um mesmo ser humano tem em sua realidade particular. Sofrendo em cada vida, gozando em cada vida, e ao mesmo tempo situado além das experiências individuais, em um nível superior de clareza e entendimento, está esse alguém.
Esse alguém é seu Eu Superior. Esse alguém é você.
Fonte: Tô no Cosmo
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